Insegurança jurídica ameaça modelo de concessão no Brasil
"A matriz de risco tem de ser melhor dividida", defende César Borges, presidente da ABCR e ex-ministro dos Transportes
Ex-ministro dos Transportes entre 2013 e 2014, o presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), César Borges, faz críticas contundentes à política do atual governo para o setor. Diz que a Medida Provisória (MP) 752 - publicada em novembro para regrar as prorrogações e relicitações de ferrovias, aeroportos e rodovias - é "inócua" para o segmento rodoviário. Dispara, ainda, contra o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que não estaria cumprindo as condições de financiamento da 3ª etapa de concessões. "Além da queda, o coice", diz, sobre o "caso Concebra", concessionária da Triunfo. Leia a seguir trechos da entrevista exclusiva ao Valor.

Valor: A ministra-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça, disse que os acordos de leniência com o Ministério Público Federal (MPF) não livram as empresas de sanções administrativas ou ações de improbidade e que uma atuação conjunta entre MPF, AGU, Ministério da Transparência e Tribunal de Contas da União (TCU) daria mais segurança jurídica. Ainda, ela considera "prudente" a postura do BNDES de aguardar para conceder crédito a empresas investigadas na Lava-Jato. O que a ABCR acha disso?

César Borges: Se você faz um acordo de leniência que impõe pagamento de multas e reconhecimento de que houve incorreção na condução das relações administrativas entre empresa e governo, pressupõe que é para levar a uma situação de normalidade para que a empresa possa voltar a operar normalmente. Se ele é reconhecido pelo MPF, me parece que seria normal que o BNDES pudesse reexaminar, desde que a empresa oferecesse as garantias necessárias. Todo projeto é analisado dessa forma: quais são as garantias, qual é o retorno, se é um projeto viável, se é importante dentro da linha do BNDES e das necessidades do desenvolvimento nacional. Satisfeitos esses pontos, acho que, já que houve um acordo de leniência, nada mais seria obstáculo.

Valor: O que a ministra Grace defende é uma atuação conjunta do MPF e demais órgãos.

Borges: É criar mais passos e dificuldades para que se volte a uma normalidade nas ações dessas empresas dentro de suas atividades. Para que serve a leniência e o pagamento de multas? Acho que é para normalizar uma situação para que a empresa possa cumprir seu objetivo na sociedade.

Valor: A presidente do BNDES, Maria Silvia Marques, já disse que os acordos com o MPF não são suficientes para destravar o crédito das investigadas na Lava-Jato.

Borges: Então acho que vai se eliminar a possibilidade de essas empresas atuarem dentro da sociedade. Porque vai criar tantas dificuldades, tantos órgãos, aprovações, que vai ser quase impraticável. Acho que vai desestimular até que as empresas façam acordo de leniência e paguem multa.

Valor: O governo decidiu relicitar as concessões rodoviárias da Nova Dutra, Concer e CRT ao fim dos contratos, em 2021. A ABCR defende outra via: a realização de obras não previstas e, como contrapartida, o reequilíbrio do contrato para amortizar o investimento das empresas. Como avalia a decisão?

Borges: É um direito do poder concedente. Mas, se existe necessidade de novos investimentos na Serra da Araras [Nova Dutra, da CCR ] e na Serra de Petrópolis [Concer, da Triunfo] para salvar vidas humanas e impedir desastres que estão acontecendo todos os dias nesses trechos, é uma oportunidade que o governo está perdendo e jogando para 2021. Foram selecionados onze trechos [em concessões atuais] que poderiam ter obras adicionais no valor de R$ 15 bilhões para serem pagos ou pela prorrogação de contrato, ou aumento de tarifa, ou pelo próprio governo [as três formas de reequilíbrio econômico-financeiro]. Não precisa ser necessariamente pela prorrogação de contrato.

Valor: Por que o senhor acha que o governo decidiu relicitar se supostamente é mais racional investir já?

Borges: Gostaria muito de saber. Nas ferrovias o governo opta por prorrogação antecipada de contratos, nos portos já existe uma lei que prevê prorrogação antecipada mediante novos investimentos, em aeroportos o governo está tendo a preocupação de fazer uma renegociação que possa manter as atuais concessões em pé. Por que na concessão rodoviária há esse impedimento? Alguns dizem que é porque está no contrato uma proibição. Mas a Lei nº 8.987 [das Concessões] autoriza a prorrogação, e o contrato não supera uma lei. Se o contrato tem uma cláusula que é subordinada a uma lei, o que vale é a lei.

Valor: Mas se o que vale é sempre a lei por que existe um contrato?

Borges: O contrato vem esmiuçar, detalhar as cláusulas contratuais, mas contrato nenhum pode subverter a lei. Isso é do direito administrativo.

"As agências não se sentem confortáveis para analisar os reequilíbrios; hoje elas não assinam nem a lápis"

Valor: O senhor foi ministro dos Transportes no governo da ex-presidente Dilma. Por que não autorizou novos investimentos?

Borges: A presidente tinha uma posição de não prorrogar os contratos. A posição dela era fazer as intervenções mediante pagamento. E foi feito assim, por exemplo, no início da obra da Serra de Petrópolis. De lá para cá o que aconteceu foi que faltou recurso do Orçamento da União por conta do desequilíbrio fiscal. São três opções de reequilíbrio, qualquer uma delas é válida, o que não é válido é aguardar dez anos para esses investimentos acontecerem para o usuário usufruir do benefício.

Valor: A MP 752 está tramitando e existe uma expectativa de dois editais de rodovias saírem neste semestre. Como está o ambiente atual do setor rodoviário?

Borges: É preciso avançar muito mais e não seria apenas fazendo grandes estirões rodoviários. Claro que ainda precisa ser feito em algumas regiões, mas o Brasil precisa evoluir pelas autoestradas. Um país com a economia complexa como a do Brasil e que avançou tanto na produção agrícola precisa de estradas duplicadas para escoar a produção. Mas lamentavelmente parece que o país não consegue botar de pé um modelo de concessão para atender a necessidade de logística. E isso está nos deixando, em comparação com China, Estados Unidos e União Europeia, bem aquém das necessidades. Temos de criar um modelo permanente, que cuide do passado, do presente e do futuro para fazer a malha rodoviária que o Brasil precisa.

Valor: Quanto da malha rodoviária é duplicada?

Borges: Hoje são 204 mil quilômetros de rodovias pavimentadas considerando estaduais e federais. Desse total há cerca de 19 mil quilômetros duplicados. Não chega a 10%, é muito pouco.

Valor: Qual modelo o senhor defende?

Borges: Um modelo de concessão com marcos regulatórios bem definidos em que se veja o setor privado como parceiro do desenvolvimento. O setor privado quer ter segurança no negócio que ele está fazendo junto com o poder concedente, seja federal ou estadual. Como as regras vão mudando e as agências reguladoras não têm capacidade de decidir sobre os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, elas ficam reféns dos órgãos de controle, ficam reféns das indefinições governamentais. Com isso não há a atratividade necessária para que o setor privado invista. De um lado o governo quer o setor privado investindo, mas depois não quer remunerar o setor privado na amortização dos investimentos.

Valor: Quais são os principais gargalos?

Borges: As agências, de modo geral, não se sentem confortáveis para analisar os reequilíbrios que existem dentro de uma concessão. Uma concessão de 20 anos exige investimentos novos que não estavam previstos e há modificações na própria dinâmica de uma concessão. É preciso respaldar o agente público porque, do contrário, as agências não vão tomar qualquer decisão. O que se diz hoje é que as agências não assinam nem a lápis. Outro gargalo se prende ao modelo dos governos federal e estaduais para atrair o capital nacional e o internacional. Isso tem acontecido muito timidamente. Em 2013 tivemos um avanço com a 3ª etapa, foram 5 mil quilômetros de licitação entre o fim de 2013 e início de 2014. Esse programa tem dificuldade de se colocar de pé. Todas as condições que foram ofertadas àquela época pelo governo federal não estão sendo mantidas.

Valor: Quais?

Borges: Por exemplo, condições de financiamento pelo BNDES em até 70% do valor do projeto, com juros que seriam TJLP mais 2%. Outro tipo de condição que foi dada pelo governo era que haveria até uma participação dos fundos de pensão no chamado fundo noiva, que também não aconteceu. As condições previstas de demanda de tráfego eram uma em 2013. A previsão era de um crescimento anual de 4,5% do PIB, quando foi feita a modelagem se reduziu para 2,5% e, na verdade, houve redução para 3,5% em dois anos consecutivos. Isso desequilibra qualquer contrato. O governo deveria estar debruçado sobre esse assunto para tentar resolver, são 5 mil quilômetros de estradas que poderiam estar duplicadas em cinco anos.

Valor: Sobre o financiamento do BNDES, a carta-compromisso dizia que o banco financiaria até 70%, dependendo do Índice de Cobertura do Serviço da Dívida (que mede a capacidade de a geração de caixa do projeto ser suficiente para pagar as prestações do financiamento). A reclamação é em relação ao percentual que o BNDES está financiando ou que ele sequer está financiando?

Borges: Existem várias análises. O índice de cobertura não está sendo atendido porque na época que o projeto foi modelado, em 2012, existia uma demanda de tráfego, só que o país entrou em recessão, ninguém podia prever isso. Como houve diminuição do tráfego devido à recessão, isso levou o BNDES a recalcular o índice de cobertura e dizer "não, para esse projeto só posso emprestar 40%, 50%, pois ele só tem cobertura para isso". Portanto vai precisar de um outro equity para o qual a empresa não está preparada. Outra questão é que o banco mudou inteiramente as garantias. Na época se dizia que ia fazer como project finance, ou seja, o próprio projeto se garante. Não está sendo feito assim. O BNDES exige garantias corporativas e, mais recentemente, começou a exigir aval dos sócios. E quando os sócios não dão aval, mesmo tendo aprovado o financiamento, o banco não conclui o processo de liberação. O dinheiro não sai. E sem o financiamento o projeto não fica de pé, porque não tem equity nas empresas nacionais ligadas ao setor para bancar o programa.

Valor: Quando essas mudanças de regras foram feitas?

Borges: Começaram a não se efetivar no governo passado e se agravaram no atual.

Valor: Por que se agravou?

Borges: Outra explicação para não sair o empréstimo é dizer que há empresas com envolvimento na Lava-Jato. Na verdade cada concessão é uma sociedade de propósito específico. Claro que o controlador pode ter envolvimento na Lava-Jato, mas não necessariamente a concessão em si tem. Mas o BNDES está intransigente. Nem todas têm esse tipo de problema, mas também não tem saído empréstimo por conta das garantias. E a solução que o governo achou foi a MP 752 dizendo que quem não suportar o projeto devolva para ser relicitado. As coisas não são feitas dessa forma, porque não estão dando garantia de como o capital que não foi amortizado será pago. As regras fixadas na MP 752 não dão segurança para ninguém devolver. E devolvendo, se for o caso, provavelmente você não vai ter os investimentos, terão de ser prorrogados no tempo, além de que provavelmente a tarifa será bem mais alta do que a do leilão.

Valor: Por quê?

Borges: Porque simplesmente as condições econômicas mudaram radicalmente. Em 2013 não se previa a recessão que tivemos.

"O capital externo não está vindo porque o poder concedente não define marcos regulatórios que deem garantia"

Valor: Mas esses riscos não são do concessionário?

Borges: No contrato se coloca risco de demanda e risco de financiamento por conta da concessão. Mas são riscos que surgiram por medidas que não foram tomadas pelas concessões. Foram casos fortuitos que, através de medidas governamentais, levaram o país a essa situação. O governo tinha de reavaliar. Não adianta colocar o peso nas costas de alguém que não pode carregar. E o projeto não fica de pé. É muito mais lógico e prudente sentar e renegociar, uma vez que as condições mudaram extraordinariamente. A matriz de risco tem de ser melhor dividida.

Valor: Se o modelo era ruim, por que as concessionárias entraram?

Borges: Porque em 2013 elas acreditavam que o país tinha uma rota de crescimento. Além das condições favoráveis de financiamento. Mas não se efetivou nem uma nem outra. E essas condições têm de ser reavaliadas. Quando o governo criou o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) me pareceu que foi dentro dessa linha, pelo menos foi o que nós lemos nas entrevistas. Mas até hoje não vi essa vontade política do governo se debruçar sobre essas concessões para torná-las viáveis. E viáveis não para que as concessionárias tenham benesses. Viáveis para que o país possa ter uma malha logística de autoestradas duplicadas num tempo hábil a satisfazer as carências em infraestrutura.

Valor: Como é a interlocução com o governo?

Borges: Boa. Temos conversado com os ministérios dos Transportes, do Planejamento, PPI. Não tenho tido dificuldade de colocar nossas posições. Lamentavelmente temos sido pouco ouvidos. O governo não considerou muito quando resolveu que seria a MP 752 que iria resolver essa questão. Não vai. A MP é até efetiva no setor ferroviário, pode eventualmente ser bem utilizada no aeroportuário. Agora, com certeza para o setor rodoviário, como está colocada, é inócua. Ou o Congresso cria essas condições de aceitação e dá uma saída possível para que essas concessões sejam revistas ou ela será inócua. E é uma situação muito ruim, vão perder todos.

Valor: Como estão encaminhando isso, quais as emendas que propuseram à MP?

Borges: Acompanhamos de perto o processo legislativo. Há muitas emendas apresentadas pelos parlamentares que merecem apoio, principalmente aquelas que procuram trazer o assunto para uma base realista. Por exemplo, se existirem reivindicações de reequilíbrio econômico-financeiro feitas para agência reguladora, é preciso que a ANTT se pronuncie a respeito. Há emendas que buscam disciplinar a indenização de ativos não amortizados.

Valor: Uma crítica que se faz é que se o governo repactuar os termos passará uma mensagem ruim. Há investidores externos que dizem não entrar no setor porque quem ganha são sempre os mesmos, que acham maneiras de se perpetuar na concessão.

Borges: Isso não é verdade. O que está se propondo é renegociar um contrato dentro de uma realidade. O investidor estrangeiro tem receio dos riscos regulatórios e tem receio exatamente quando vê que concessões importantes no Brasil, inclusive algumas operadas por empresas que não são nacionais, não estão tendo seus pedidos de reequilíbrio atendidos. Se há toda essa dúvida de que o poder concedente não está atendendo ao concessionário, aí sim existe o risco. Recentemente o Estado de São Paulo fez uma licitação em que se previa uma participação muito grande, inclusive de capital externo. Foram duas participantes, uma empresa nacional e outra operada por pessoas de dentro do país. O capital externo não está vindo porque simplesmente o poder concedente não está dando marco regulatório que dê garantia aos investimentos.

Valor: Caso não tenha sucesso nessas modificações da MP, o que vai acontecer com as concessões da 3ª etapa?

Borges: Eu diria que provavelmente vai terminar tudo judicializado. O Executivo não toma posicionamento que resolva as questões. O Legislativo, por sua vez, não tem uma medida efetiva. Então o Judiciário está se maximizando em termos de providências e será sempre a última instância a ser recorrida pelos interessados.

Valor: A Triunfo já entrou na Justiça contra uma cobrança do BNDES de uma dívida da Concebra.

Borges: No caso da Concebra, pelo que tenho informação, o BNDES não liberou o financiamento de longo prazo e executou o chamado empréstimo-ponte. Quando chega no momento de liberar o longo prazo o banco exige um aval até dos sócios, eles não dão e o banco executa o empréstimo-ponte que foi concedido e as devidas garantias que foram dadas para o empréstimo. Quer dizer, simplesmente inviabiliza o projeto.

Valor: Surpreendeu a execução?

Borges: Inteiramente. Porque havia contrato assinado para liberação do longo prazo. É o que se diz: além da queda, o coice.

Valor: Em que medida o senhor acha que esse cenário pode comprometer as próximas concessões?

Borges: Como está hoje, dificilmente vamos avançar. Gostaria muito que o governo fosse mais ambicioso no seu programa e lamento que descuide do passado. As concessões existentes, seja através dos novos investimentos ou da solução do problema da 3ª etapa, já têm concessionárias trabalhando. Por que alguém do governo não é designado para resolver esses assuntos? Eu acreditei, até determinado momento, que o PPI seria o órgão do governo designado para fazer isso.

Fonte: Valor Econômico, 8/3/2017.

Read Also Other News

Agência Porto
| 23 Abr, 2024

Comércio exterior registra superávit de US$ 2,94 bi na 3° semana de abril

Read more
Agência Porto
| 23 Abr, 2024

Porto de Paranaguá bate recorde de movimentação em 24h

Read more
Agência Porto
| 23 Abr, 2024

Em reunião com presidente Lula, grupo MSC anuncia R$ 17 bi de investimentos

Read more

How can we help?

Tell us how we can help with one of our services and solutions.

Request a quote

This website uses cookies to personalize content and analyze website traffic. Meet our Privacy Policy.