A utilização do espelho d’água, bem da União indispensável à operação portuária e que constitui elemento essencial à exploração da atividade portuária, conforme previsto na Lei nº 12.815/2013, segue envolta em controvérsia jurídica sobre a delimitação de competências entre a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ).
De um lado, a SPU exerce a gestão dominial dos bens públicos federais, nos termos do art. 20, III, da Constituição Federal e da Lei nº 9.636/1998. De outro, cabe à ANTAQ a regulação técnica da atividade portuária, conforme previsto na Lei nº 10.233/2001.
É preciso distinguir a outorga para explorar a atividade portuária, atribuição do poder concedente, da autorização para uso do espaço físico em águas, cuja gestão permanece sob a responsabilidade da SPU. Trata-se, portanto, de temas distintos: um regulatório, outro patrimonial.
A Secretaria do Patrimônio da União (SPU), com fundamento no art. 18 da Lei nº 9.636/1998, passou a exigir retribuição pecuniária pelo uso do espelho d’água por meio das Portarias nº 404/2012 e 7.145/2018. Essa cobrança, ao incidir sobre instalações reguladas por contratos administrativos firmados com base na Lei dos Portos, gerou insegurança jurídica ao impor ônus não previsto na modelagem originalmente pactuada.
A questão foi judicializada pela Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP), resultando na Apelação Cível nº 0036080-60.2012.4.01.3400, julgada pelo TRF da 1ª Região, com trânsito em julgado em outubro de 2024. O Tribunal firmou entendimento de que a competência para dispor sobre a ocupação e uso do espelho d’água na exploração portuária é exclusiva da ANTAQ, prevalecendo o regime jurídico setorial sobre normas patrimoniais gerais. Afastou-se, assim, a cobrança da SPU, por se reconhecer que o uso do espelho d’água é inseparável da atividade portuária e já está contemplado na outorga.
Contudo, a AGU delimitou os efeitos da decisão: ela se restringe às empresas associadas à ABTP até a data do ajuizamento da ação (2012) e aos terminais localizados na jurisdição do TRF1, ou seja, Distrito Federal, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia e Tocantins. Fora desse escopo, o entendimento institucional é de que a cobrança patrimonial permanece juridicamente possível. Ou seja, a tese jurídica fixada, embora relevante, ainda não possui alcance nacional.
Destaca-se a Resolução ANTAQ nº 127/2025, que regulamenta a ocupação de áreas na poligonal dos portos organizados. A norma institui o contrato de uso do espelho d’água como instrumento regulatório voltado à ocupação de áreas molhadas para movimentação aquaviária e acostagem, reforçando a competência da ANTAQ. A administração do porto poderá pactuar com o interessado o uso do espelho d’água localizado na poligonal do porto, conforme critérios técnicos definidos pela norma.
Diante desse cenário, evidencia-se que a definição de competências sobre o uso do espelho d’água permanece juridicamente controvertida. Persiste a necessidade de uma regulamentação clara, uniforme e de alcance nacional por parte da ANTAQ, capaz de garantir segurança jurídica e coerência regulatória a todo o setor portuário.
Fabiana Barbosa é advogada, mestre em Planejamento de Transportes pela UnB, consultora Jurídica da Agência Porto Consultoria Portuária e Empresarial, com atuação no setor portuário e regulatório.
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